A situação mundial atual é de emergência ecológica. Entretanto, tal emergência é uma das múltiplas dimensões de uma crise mais ampla que atinge a própria ordem capitalista fóssil neoliberal, globalizada, financeirizada. Está em curso uma transformação em vários sentidos, entre eles em sentido “verde”, expressando um momento de adaptação, de acomodação do sistema com vistas à sua reprodução. No centro dessa guinada verde está a chamada “transição energética” enquanto novo arranjo econômico e tecnológico que busca contribuir para o revigoramento de um capitalismo que, desde 1970, está numa fase marcada por um continuum depressivo, de queda na produtividade.
Tal transição, em termos de descarbonização e de uso de fontes renováveis, vem sendo defendida como uma “solução inevitável” diante do aquecimento global, que em 2024 bateu recordes e superou as previsões. Não há dúvida acerca da crise climática que assola o mundo, mas a emergência ecológica não se restringe apenas às mudanças climáticas. Nesse sentido, não pode nos escapar o fato de que, nos termos em que a transição energética é hoje colocada, ela prioriza a dimensão tecnológica em detrimento de transições ecossociais que abranjam também aspectos produtivos, urbanísticos, culturais e alimentares. Tido como neutro, despolitizado e desideologizado, como pertencente ao campo do “especialista” ou tecnocrata, o conceito de transição energética cria uma falsa ilusão de solução, pois ele não tem a ver com abandono das fontes tradicionais, mas com diversificar e ampliar as opções energéticas.

De fato, como ensina Jean-Baptiste Fressoz, nunca houve uma real transição na história da energia: foi-se da queima de lenha para o carvão no século XIX, e do carvão para o petróleo e a energia nuclear no século XX, sem nunca as novas fontes de energia primária substituírem as anteriores. A lógica sempre foi a da adição. Por sua vez, do ponto vista técnico, as tecnologias da transição requerem o uso intensivo de fontes fósseis. Segundo especialistas no campo da engenharia, a fabricação dos aparelhos mais eficientes de energias renováveis (que, inclusive, também são utilizados para a produção de combustíveis fósseis) demanda altas temperaturas que só as fontes tradicionais podem fornecer.
A transição em questão também deve ser compreendida em relação ao deslocamento do centro dinâmico do mundo do Ocidente para o Oriente e à disputa entre China e Estados Unidos pela liderança em digitalização e em tecnologias verdes, e pelo o a recursos naturais estratégicos que garantam a sua segurança energética. Precisamos chamar a atenção, entretanto, para o fato de que isso acontece em um ambiente internacional cuja matriz energética continua a depender fortemente das fontes fósseis, e em que as corridas armamentistas não apenas devastam vidas e territórios, mas também comprometem fundos que poderiam servir para o financiamento climático, e posicionam o setor militar como um dos maiores emissores institucionais de gases de efeito estufa.
Segundo o relatório World Oil Outlook 2024 da Organização de Países Exportadores de Petróleo, mesmo com as energias renováveis respondendo por parte importante do crescimento da demanda energética global, a participação do petróleo e gás na matriz energética em 2050 ficará acima do 50%.
E como América Latina se insere nesse contexto transicional?
Enquanto os países da região não chegam a representar sequer 8% das emissões mundiais de gases de efeito estufa, é sobre eles que recai a pressão extrativa de recursos energéticos e a superexploração de mão de obra, reforçando a especialização produtiva, o desmatamento, a pobreza e a devastação socioambiental. O que há é uma transição tecnocrática, corporativa e neocolonial, nos termos de Maristela Svampa. E essa transição, por meio do extrativismo exportador e da dependência tecnológica e financeira, garante as condições de subordinação da periferia latino-americana.
Em referência ao extrativismo exportador, os territórios latino-americanos continuam a ser vistos pelas grandes potências como uma espécie de “zonas de sacrifício” ou “espaços privatizáveis” a serem disputados por meio de investimentos ou empréstimos, orientados à exploração e à exportação de recursos naturais abundantes como incidência solar, intensidade de ventos e força das águas (para energias fotovoltaica, eólica e hidroelétrica); florestas (para replantio e descarbonização); milho e soja (para produção de biocombustíveis); minerais críticos como lítio, níquel, cobre, terras raras (para baterias e armazenamento, mas que abastecem também a indústria bélica, além de servir à exploração petroleira). Ao mesmo tempo em que se verifica que a América Latina é pensada como um receptor “privilegiado” de financiamento externo “verde”, que deve movimentar as economias locais e trazer algum ganho em infraestrutura, precisamos alertar aqui para o risco em termos de controle dos recursos energéticos por parte de grupos e capitais estrangeiros e de responsabilização pelos impactos ambientais e sociais das plantas instaladas.
Já no relativo à dependência tecnológica e financeira, análises recentes sobre a implementação das tecnologias necessárias à transição energética em países da região chamam a atenção para a ausência de transferência de tecnologia, assim como de contratos que garantam investimentos em desenvolvimento científico-tecnológico. O que há é treinamento do pessoal que usará a tecnologia importada. Ao pagamento de royalties pela tecnologia importada somam-se os empréstimos para levar adiante o aparelhamento transicional. Por meio deles, os países latino-americanos acumulam dívida e caminham em direção à austeridade fiscal. Essa austeridade vem com a prioridade de ressarcir a dívida, limitando as capacidades dos Estados para formular e implementar agendas sociais e climáticas mais ambiciosas.
A ideia de que “o mundo precisa da América Latina” ou de que “América Latina é parte da solução climática” parece reproduzir o clássico modus operandi imediatista na região que tem levado a ceder recursos naturais e soberania em troca de “soluções” para o desenvolvimento nacional pela via do financiamento externo. Renunciando a qualquer pretensão de autonomia estratégica no longo prazo e minimizando reclamos em torno da aceleração da devastação ecológica.
Especialmente na Semana do Meio Ambiente, o debate e a reflexão devem expandir seus horizontes para além da questão do aproveitamento da demanda externa ligada à construção de um suposto capitalismo verde. Discutir as vulnerabilidades socioeconômicas e ecológicas da periferia latino-americana em meio à ordem capitalista em acomodação é tarefa urgente e fundamental.
*Professor da Ufrgs e coordenador do Núcleo de Estudos em Política, Estado e Capitalismo na América Latina (NEPEC).
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.
