Três anos atrás, no dia 5 de junho de 2022, o indigenista Bruno Pereira e o jornalista britânico Dom Phillips foram executados no município de Atalaia do Norte (AM), nas redondezas da Terra Indígena (TI) Vale do Javari, onde vive o maior número de indígenas em isolamento voluntário e de recente contato do mundo. Na Justiça, esse capítulo ainda não foi encerrado, e no território os desafios parecem ser os mesmos daquela época, mas intensificados.
Bruno Pereira já havia se tornado uma figura de confiança no círculo dos indígenas da região pela atuação em conjunto com a União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja). Foi ele que criou a Equipe de Vigilância da Univaja (EVU), responsável por identificar pontos de vulnerabilidade na região e pela capacitação de indígenas incumbidos de fazer a segurança.

Já Dom Phillips estava em viagem com o propósito de escrever um livro, que foi finalizado por amigos do jornalista e lançado pela Companhia das Letras, na semana ada, com o título Como salvar a Amazônia: uma Busca Mortal por Respostas.

O advogado Eliésio Marubo, vinculado à Univaja, criticou a atuação do governo federal no Vale do Javari. Ele avalia que o nível de criminalidade na triangulação dos municípios amazonenses de Atalaia do Norte, Benjamin Constant e Tabatinga, em torno da TI Vale do Javari, piorou, atingindo um estágio talvez irreversível. Na região está aglutinado um conjunto de fatores de difícil solução, como o crime organizado, a pesca e a caça ilegais.
“Continua acontecendo invasão tal qual naquele momento pretérito, do Bruno e do Dom. O fortalecimento dos órgãos é importante. Se isso não acontecer, vai continuar chovendo no molhado, enxugando gelo”, afirmou ele, em entrevista à Agência Brasil.
Em agosto de 2023, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) anunciou a constituição de uma mesa de trabalho conjunta para tentar garantir segurança de 11 pessoas associadas à Univaja. Hoje apenas oito ainda estão no Programa de Proteção aos Defensores e Defensoras de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas (PPDDH), conforme revela Eliesio Marubo, sendo que duas delas desistiram por não ver efetividade na medida. O terceiro nome desligado é Paulo Marubo, que morreu de hepatite, em fevereiro do ano ado.
Para Eliesio, o adequado seria que o governo federal oferecesse escolta 24h às lideranças, já que o risco que correm é ininterrupto, e isso não é previsto no programa de proteção a qualquer pessoa, ficando restrita a autoridades governamentais. As lideranças deverão acionar a Justiça para cobrar mais efetividade.
O advogado marubo classifica as providências tomadas pelo governo federal como “muito incipientes” e, portanto, incapazes de sanar questões urgentes, como é o caso do tráfico internacional de drogas. Ele comenta que, enquanto em uma margem de um dos rios da TI há uma presença maior de forças de segurança, na outra, os traficantes se espalham mais à vontade, recrutando até mesmo indígenas para sua rede.
Marubo ressalta que a TI Vale do Javari fica em uma tríplice fronteira, o que dificulta ainda mais a coibição dos crimes.
“Em relação à proteção do território, estamos na mesma. ‘Foram 50 operações.’ Ok. Mas se esquecem de que, depois de uma operação, o crime é mais organizado e menos burocrático do que a burocracia estatal. No dia seguinte à queima de balsa de garimpo, tem outra no lugar”, alerta.

Outros problemas apontados por Eliesio Marubo são o desfalque nas equipes do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e as mãos atadas da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). Assim como o Ibama, a Funai tem lidado, há anos, com uma grave falta de pessoal, com servidores tendo que cobrir, sozinhos ou em minúsculas equipes, imensas TIs, algo que representantes da categoria já alertaram que não seria resolvido com o quantitativo de novos concursados aprovado até agora.
Um dos legados de Bruno Pereira, construído com a Univaja, que não ficaria para a posteridade de modo abstrato, mas sim como mais uma ferramenta de proteção aos indígenas e indigenistas que trabalham na TI Vale do Javari, era o plano da Equipe de Vigilância da Univaja. Com a primeira expedição em agosto de 2021, terminada no mês seguinte, a EVU redigiu um relatório, intitulado Expedição de Monitoramento e Vigilância da EVU na TI Vale do Javari: Rios Itaquaí, Ituí e Quixito, de 56 páginas, com 67 pontos de invasão mapeados e coordenadas de sistema de posicionamento global (GPS), que os destacaram com perfeita precisão, latitude e longitude. A partir disso, o indigenista e os companheiros da Univaja compreenderam melhor o que a situação demandava.
A CIDH informou em abril deste ano que recebeu o relatório da mesa de trabalho estruturada para acompanhar as interlocuções entre as lideranças e o governo federal e que o documento destaca a implementação do plano de proteção territorial. As ações de fiscalização no território, disse a CIDH, foram intensificadas entre maio e agosto de 2024, com medidas planejadas até o final de 2025. O órgão, vinculado à Organização dos Estados Americanos (OEA), salientou, ainda, as reclamações das lideranças para haver medidas mais concretas para proteger comunicadores.
A TI Vale do Javari é habitada por cerca de 6,3 mil pessoas, pertencentes a 26 povos e divididas em 64 aldeias. O local centraliza o maior número de povos em isolamento voluntário do mundo, grupos que optam por manter distanciamento de não indígenas.
Produção de conhecimento
Algo que está nos planos de Eliesio Marubo, na luta pelos povos da região, é a aproximação com a academia e a produção de dados que possam subsidiar o discurso em sua defesa. Jovens indígenas, por exemplo, têm sido bastante incentivados a obter diploma universitário e se munir de informações que fortaleçam suas bases de resistência.
Daniel Cangussu, coordenador da Frente de Proteção Etnoambiental (FPE) Madeira-Purus, da Funai, afirma que, de fato, um dos principais instrumentos que os defensores dessas comunidades têm são os estudos sobre elas. Ele relata que lhe perguntam com frequência se, em mãos erradas, não poderiam facilitar o cometimento de violências contra elas, ao que responde que não.
Cangussu, que, identicamente a Bruno, doa totalmente sua vida à causa, afirma que, por um lado, os inimigos dos indígenas desprezam a ciência e que, por outro, a lacuna de dados e informações trava ações de proteção. Ele defende que sejam preservados somente com certo nível de sigilo.
“Ninguém tem dúvida de que as coordenadas geográficas precisam ser tratadas com o máximo de rigor e sigilo possíveis, porque a gente corre o risco de produzir informação e permitir que fiquem disponíveis, direta ou indiretamente, a pessoas vinculadas à bancada da bala, à evangélica. Mas acho que, por conta desse sigilo, a gente acabou fazendo com que esse sigilo se transferisse para todas as informações. E, de algum modo, isso fragilizou a proteção dos grupos que a gente atua tanto para proteger”, avalia, reconhecendo que ele mesmo mudou de ideia.
Estratégia
Os dois indigenistas dos isolados, Cangussu e Bruno, dialogavam no período de mais intensa perseguição dentro da Funai, um dos órgãos mais afetados pela política do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, que atacavam o funcionalismo público e eram da corrente anti-indígena.
Naquele período, Cangussu e Bruno não podiam ser tão transparentes quanto às suas atividades, sobretudo, as feitas em campo. Por isso, em cumplicidade, deixavam de compartilhar com exatidão o que estavam fazendo, os destinos aos quais estavam indo. Só assim conseguiam cumprir a missão a que foram designados.
“Quando a coisa complicou mesmo, o Bruno era meu coordenador. De Brasília, inclusive. Estive lá com ele e decidimos minha saída da coordenação da FPE, no início de 2018. Essas avaliações estratégicas pela pressão, de como proteger os colegas, isso foi decidido em uma sala pequena, em Brasília”, diz Cangussu, que é biólogo e se especializou, além do indigenismo, em botânica e ecologia histórica, já tendo sido responsável pela proteção de agrupamentos do Amazonas, Rondônia, Tocantins e Maranhão.
“Quando retorno ao Amazonas, em 2021, era o Bruno a pessoa que mais se engajou, a que teve mais coragem para reunir os colegas. Não só ouvir, mas acompanhar os bastidores, porque sabia que quem permanecia na Funai permanecia com todos os riscos possíveis. Ele tinha ciência disso”, emenda.
Bruno Pereira foi também alvo de Bolsonaro publicamente, pois o ex-presidente tentou manchar sua reputação profissional, motivo pelo qual a Funai se desculpou. Nessa campanha de difamação, o governo de Bolsonaro se empenhou em transmitir a imagem do indigenista como se tivesse sido assassinato como resultado de sua imprudência.
A confirmação da morte de Bruno foi um choque para os colegas.
“Foi um golpe duríssimo. A gente ficava ‘Não, isso não aconteceu’. Até que alguns colegas do Opi [Observatório dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato] ligavam e falavam ‘Cangussu, perdemos mesmo o Bruno’. Caiu a ficha de que o mundo não estava tão bom realmente, que as coisas tinham mudado para muito pior”, conta Cangussu.
Legado
A obra deixada inacabada por Dom Phillips tem dez capítulos, que versam do “caos pecuário” a possibilidade de financiamento, modelos de agrofloresta, biofarmácia e bioeconomia. A companheira de Dom, Alessandra Sampaio, tem participado de eventos de lançamento, Brasil afora.
Um dos companheiros de luta de Dom e Bruno e coautor do livro recém-chegado às prateleiras é o líder Beto Marubo, que, em certo trecho, explica a decisão de povos originários se manterem distantes de não indígenas, devido a violências que viveram ou testemunharam, entendidas pelos agressores como justificáveis por conta de seu modo de vida diferente.
“‘Quem são esses brancos? Eles são homens bons?. E eu tive de lhe dizer: ‘Não, eles não são bons. Eles trazem o fim do mundo com eles.’ O contato forçado foi, por quase quinhentos anos, a política do Brasil em relação aos povos indígenas. A sociedade brasileira viu povos inteiros desaparecerem até que, na geração anterior à minha, decidimos que já havíamos visto muitos indígenas morrerem.”
Um instituto foi criado para homenagear Dom Phillips e leva o nome dele. As valiosas contribuições de Bruno Pereira e sua companheira, a antropóloga Beatriz Matos, também têm encontrado um lugar em que recebem a devida atenção, o Observatório dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato (Opi), que foi ao ar no aniversário do indigenista, em 2023. Na ocasião, a entidade anunciou uma plataforma de monitoramento desses povos, batizada de Mopi, palavra que, no idioma zo’é, significa “fazer ferroar” e remete a um duplo sentido, o de oferecer medicina aos aliados e veneno aos inimigos. Beatriz Matos ocupa o cargo de diretora dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato do Ministério dos Povos Indígenas (MPI).
Outro lado
A Agência Brasil tentou contato com a Funai, o MPI e a Polícia Federal, mas não recebeu resposta até o fechamento desta matéria. O Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) encaminhou nota à reportagem, afirmando estar ciente dos perigos que correm as comunidades indígenas da TI Vale do Javari e que “renova o compromisso com a reparação e a não repetição da violência sofrida por defensores de direitos humanos, comunicadores e ambientalistas na região”.
Na mensagem, o MDHC ressalta que sua assessoria internacional coordena a mesa que verifica se estão sendo cumpridas as medidas cautelares determinadas pela CIDH no caso, com apoio do Ministério das Relações Exteriores (MRE) e do MPI. A pasta informa que o plano de proteção abrange mais de 100 pessoas ligadas à Univaja, além da proteção individual de 27 lideranças.
“Em 2024, o PPDDH destinou R$ 1 milhão à Univaja para estruturação e execução das ações de proteção. Já neste ano, R$ 500 mil adicionais estão em processo de liberação, com aprovação orçamentária concluída”, escreve o MDHC, que assegurou que as medidas são todas definidas após escuta dos líderes indígenas.
Recorde o caso de Dom e Bruno
Bruno Pereira e Dom Phillips foram mortos em uma emboscada, em junho de 2022. Foram vistos pela última vez quando iam da comunidade São Rafael para a cidade de Atalaia do Norte, onde teriam um encontro com lideranças indígenas e de comunidades ribeirinhas. Seus corpos foram resgatados dez dias depois. Eles foram enterrados em uma área de mata fechada, a cerca de três quilômetros da calha do Rio Itacoaí.

Identificados e detidos, Amarildo da Costa Oliveira, Oseney da Costa Oliveira e Jefferson da Silva Lima foram denunciados, em julho de 2022, por ass e ocultar os cadáveres das vítimas. Na denúncia, o MPF apontava que, inicialmente, Amarildo e Jefferson itiram os crimes, embora, posteriormente, tenham mudado os depoimentos.
Ainda assim, para os procuradores, “os elementos colhidos no curso das apurações apontam que o homicídio de Bruno teria correlação com suas atividades em defesa da coletividade indígena. Dom, por sua vez, foi executado para garantir a ocultação e impunidade do crime cometido contra Bruno”.
Em dezembro de 2023, a PF prendeu o homem que trabalhava como segurança particular de Rubem Dario da Silva Villar, conhecido como Colômbia, denunciado pelo Ministério Público Federal como mandante dos assassinatos de Bruno e Dom. Colômbia estava preso por chefiar uma quadrilha.
O inquérito da PF ficou pronto dois anos e meio após o crime. Ao todo, nove pessoas foram indiciadas.
Em agosto de 2024, a Univaja se pronunciou sobre a mudança do delegado à frente das investigações do caso. No mês seguinte, a 4ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) analisou um recurso da defesa dos acusados e decidiu manter o julgamento de Amarildo da Costa Oliveira e Jefferson da Silva Lima por júri popular. Porém, entendeu que não havia provas suficientes contra Oseney da Costa Oliveira no crime, algo que o MPF contesta.
A Univaja fez um apelo para que o MPF recorresse. Em outubro de 2024, o MPF entrou com recurso pedindo que Oseney fosse a júri popular.