Qual é o papel da arte diante, e depois, de desastres climáticos? Entre as respostas possíveis estão o acolhimento, o gesto de escuta e o poder de nomear o vivido. Foi isso que moveu os artistas-pesquisadores Fabiano Nunes, Juliana Vicari e Cibele Sastre a criar Muita Água, ecoperformance nascida em meio à maior tragédia ambiental da história do Rio Grande do Sul, com mais de 180 mortos, milhares de desabrigados e cidades submersas.
Especialistas no Sistema Laban/Bartenieff (LBMS), linguagem de ação e criação do movimento, o trio se reencontrou em Porto Alegre após o retorno de Fabiano ao estado, depois de duas décadas fora. A princípio, buscavam apenas se reconectar com a linguagem labaniana. Mas tudo mudou com a enchente.
“A tragédia virou o nosso assunto. Não era mais possível criar sem atravessar esse evento. Cada um foi afetado de uma forma. Eu estive nos resgates no Sarandi; Cibele coordenava ações em um dos maiores abrigos do estado; Juliana estava com seus filhos e sua família”, relembra Nunes.

O primeiro texto da performance surgiu como desabafo. “Meu estado emocional ficou precário quando comecei a acompanhar os noticiários e suas narrativas tendenciosas pela TV e internet, em contraste com o desespero dos grupos de WhatsApp de ajuda e voluntariado. O caos, a falta de luz, de água, de gestão pública – e uma impressionante hipocrisia dos governantes”, relata o ator.
Sastre insere a experiência no contexto mais amplo de sua pesquisa sobre ecossistemas e presença, desenvolvida com o Movimento Meninas Crespas da Restinga, com sede na Restinga, périferia de Porto Alegre. “O tema da enchente reacende a questão do racismo ambiental, do saneamento básico e da falta de orientação ambiental geral na forma como a cidade foi constituída, com profundas desigualdades entre centro e periferia”, afirma a atriz.
A crítica ecoa em debates globais sobre justiça hídrica e direitos humanos. Em 2010, a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) aprovou a Resolução 64/292, que reconhece o o à água potável e ao saneamento seguro e limpo como essencial para o pleno gozo da vida e de todos os direitos humanos. Segundo a ONU, a insegurança em relação à água mata mais pessoas anualmente do que todas as formas de violência, incluindo guerras.
O corpo em emergência
“Foi um ato de desespero. Eu precisava respirar. Escrevi o texto que usamos como trilha sonora da cena, mas jamais imaginei que viraria material performático”, conta Nunes.
Vicari relata que, no início, o trio começou a se encontrar para criar algo que entrelaçasse os saberes do LBMS com os assuntos que os mobilizavam naquele momento. “Em maio de 2024, fomos literalmente inundados pela catástrofe socioambiental que devastou todo o estado. Nossas casas não foram afetadas, mas nós… Sim”, potua a atriz.
Conforme aponta Sastre, os primeiros ensaios foram focados na perspectiva de mostrar, através das experiências dos atores, a realidade de uma tragédia que a TV já anunciava como superada. “Denunciar que centenas de pessoas seguiam desabrigadas, centenas de casas com entulhos, sem condição de moradia, e que grande parte dessa população desassistida não vivia nos bairros nobres do centro da cidade atingidos pela inundação.”
A performance emergiu de um processo improvisado, costurado por textos, objetos e gestos partilhados. “Contamos com nossa empatia cinestésica e a linguagem comum do LBMS. Os signos foram nascendo dessa escuta mútua”, diz Sastre.
A obra estreou em ensaios abertos e depois foi apresentada na Conferência Laban Rio 2024. Segundo Vicari, o impacto no público foi imediato. “Teve gente que disse sentir o peito afundar, a respiração encurtar.” Para ela, essas reverberações conectam com a realidade e convidam à ação. “Acreditamos numa ação coletiva e transdisciplinar: a arte precisa da ciência, que precisa da política, que precisa da ecologia, que precisa da sociologia, da economia, e assim por diante. Precisamos juntar todas as forças em busca de respostas criativas para possíveis amanhãs.”
Corpo-denúncia
Mais do que obra artística, Muita Água é denúncia. Por meio do corpo, da palavra e do gesto, os artistas expõem a negligência do poder público, a desigualdade social e o racismo ambiental. “Natureza e cultura conversam para produzir sentido através do movimento”, explica Sastre.
“Nós não somos representantes do povo. Somos o povo. A indústria das fake news busca lucro e poder. Essa gente precisa perder espaço de poder”, afirma Nunes. “Seguimos lutando, acreditando na transformação. Contaminar com esperança, informação correta e conhecimento científico”, completa.
Para Vicari, a arte conecta saberes e afetos. “Essa crise é, antes de tudo, uma crise de percepção. Não nos percebemos como natureza. E essa sensibilidade está sendo atrofiada por um projeto de sociedade capitalista, extrativista, reprodutor de desigualdades.”
Muita Água segue sendo apresentada em diferentes contextos, comunidades, escolas, centros culturais, provocando mobilizações afetivas e políticas. “A arte é uma bomba simbólica. Ela conecta, emociona, reorganiza”, resume Nunes.
Um alerta ainda vivo
Com a cidade-estado ainda em recuperação, Muita Água permanece como alerta poético e político. “Tenho medo das chuvas do futuro. O que me pega é saber que muita gente ainda está desamparada. Que dois homens morreram de frio sob a ponte porque a prefeitura recolheu seus colchões, e isso foi feito na presença do prefeito”, denuncia Nunes.
Sastre reflete: “Estávamos no mesmo barco, tentando ajudar, sobreviver. Tudo aconteceu de forma rápida e intensa. E, mesmo com pouco tempo de afastamento, o reencontro já se deu em outra chave.
A certeza que move o trio permanece: a tragédia não ou. “Ela não é democrática. É desigual. E, como diz o texto: ‘Tem culpados, sim. Serão apontados, sim.’ E ponto final”, afirma Nunes.
No palco, corpos em movimento contam o que as manchetes esqueceram. Criada a partir de experiências pessoais e coletivas, Muita Água busca elaborar afetivamente os impactos da tragédia, que atingiu mais de 90% do estado, colocando mais de 300 municípios em estado de calamidade, e não permitir que eles sejam esquecidos.
“Como diz Jacques Rancière, muitas vezes é preciso ficcionalizar a realidade para poder digeri-la”, conclui Sastre.
