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Ana Penido é pós-doutorada em ciência politica pela Unicamp, pesquisadora do Grupo de Estudos em Defesa e Segurança Internacional (Gedes – Unicamp) e do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.ver mais

Estratégia Nacional de Defesa aprovada no Congresso Nacional, e daí?

Satisfeitos com o processo parecem sair os militares, que mantêm uma dupla atuação no Legislativo

“Os cidadãos não poderiam dormir tranquilos se soubessem como são feitas as salsichas e as leis.” A frase, atribuída ao ex-chanceler alemão Otto Von Bismarck, na verdade tem origem incerta, presente na literatura desde 1869. Inicialmente, ela foi cunhada como uma crítica à falta de transparência no processo legislativo, afinal, ninguém sabe exatamente quais os restos de carne formam a salsicha.

Embora alguns aspectos do Parlamento sigam opacos, como bem exemplificam a distribuição de emendas secretas, alguns aspectos são plenamente íveis pela televisão, em particular os ritos de votação de projetos. E para aqueles que assistiram a votação em segundo turno da Estratégia Nacional de Defesa, da Política Nacional de Defesa e do Livro Branco de Defesa, realmente vale a pena pensar sobre o vegetarianismo. Saber como são feitas as leis as torna piores, sem dúvidas.

Inicialmente, um esclarecimento: os documentos acima mencionados são os de mais alto nível sobre defesa no país. A política e a estratégia definem grandes temas sobre os quais qualquer cidadão brasileiro tem condições de opinar, como: O que (quem) ameaça o Brasil? Quais as prioridades o país deve ter nesse campo? Como organizar a política pública de modo a alcançá-las? Para que servem as forças armadas?

O livro branco, por sua vez, é uma medida de transparência internacional. Contendo detalhes sobre efetivo e armamentos brasileiros, busca gerar confiança nos vizinhos, mostrando que somos um país sem pretensões ofensivas. 

Exatamente pela sua importância, assim como pelo conteúdo geral, compreensível para não especialistas na área, os documentos poderiam ser objeto de amplo debate democrático, o que nunca ocorreu no país, incluindo no atual governo Lula (PT). A produção da versão inicial dos materiais ocorre basicamente dentro do Ministério da Defesa, numa junção de reflexões das três Forças singulares. 

O Partido dos Trabalhadores tem uma consolidada experiência em mecanismos de democracia participativa. Entre eles, destacam-se as conferências nacionais, momentos de escuta da comunidade nacional em torno de diversas políticas públicas. Na área de defesa, os comentários variam entre “este é um assunto para militares”, e “esse é um tema muito melindroso”, mas o fato é que a democracia participativa nunca chegou à política pública de defesa. 

Voltemos, então, aos projetos em tela na frágil democracia representativa. As minutas elaboradas pelo governo sem a participação social foram enviadas ao Congresso para a revisão prevista por lei para ocorrer de 4 em 4 anos. No último dia 22 de maio, foram a votação em Plenário no segundo turno (vídeo disponível na TV Câmara). Durante toda a tramitação do tema, nenhuma inscrição para comentários ou correções foi feita. Nenhuma consideração de mérito sobre um documento no qual está previsto, por exemplo, a destinação de 2% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro para a defesa, foi elaborada. Nenhum comentário sobre o cenário global de guerra. Nada. Foi o mais absoluto silêncio.

Ninguém da bancada à direita, parte dela usando suas patentes Coronel Patatá, Sargento Patati, ocupou a tribuna para falar sobre a importância da política de defesa para o país, ou mesmo para saudar nossas briosas forças armadas. Nenhuma inscrição da bancada à esquerda, presa na discussão sobre a punição dos autores da intentona do 8 de janeiro de 2023, incapaz de olhar para o futuro e ver na maneira através da qual a política de defesa é conduzida, um celeiro para novos golpes. Nenhuma inscrição do centrão, ponderando um naco do dinheiro que vai para a defesa. Nada. 

Além disso, há que se registrar que o tema foi para o Plenário em uma semana em que ninguém gostaria de estar lá, pois era a semana dos Prefeitos em Brasília. Foi usada como oportunidade para a obstrução dos trabalhos no Congresso pela oposição ao governo, que trava os trabalhos na intenção de pautar a votação da Anistia. Ao final, os documentos foram aprovados com o quórum de 397 votos a favor, em um quórum de 403 deputados. Agora segue para o Senado para a aprovação final.

Satisfeitos com o processo parecem sair os militares, que mantêm uma dupla atuação no Legislativo. Por um lado, reforçam que apenas eles conhecem a defesa, um setor sensível que pode prejudicar o parlamentar que queira, eventualmente, tratar “direitos como privilégios”; por outro, as Forças atuam como assessores especializados e informais, adotando práticas de lobby indireto (como viagens, reuniões em instalações militares e fotos com onças presas no Comando da Amazônia), para convencer os legisladores das pautas corporativas que lhe são caras.

Quem acompanha a Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional dirá que o episódio não surpreende. Sim, não surpreende, mas indigna. A direita ganha votos com a política de defesa e de segurança pública. Usa e abusa dos símbolos nacionais, da imagem das forças armadas, e alimenta o ciclo medo-crime-repressão. Ganha dinheiro assim. A esquerda parece envolta na frase do ex-deputado federal José Genoino (PT-SP) ainda dos anos 1990, “defesa não dá voto na democracia e dá cana na ditadura”.

A construção de uma política de defesa democrática requer maior envolvimento da sociedade civil no debate sobre esta política e seus operadores, assim como sua relação com as instituições. O dito falsamente atribuído a Bismarck está correto: “Não há como dormir tranquila depois que se acompanha como se fazem as leis”.

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