Diferentemente de outras Constituições, a de 1988 contém um capítulo específico sobre o tema “segurança pública” e demarca claramente o seu campo, diferenciando-a da chamada segurança nacional.
Contudo, não houve na carta a criação de um arranjo institucional novo, que fosse capaz de modificar o funcionamento das polícias.
A persistência da estrutura do período autoritário inviabiliza a transparência e o efetivo controle dessa política. Sem qualquer mudança substancial acerca do sistema que havia na ditadura, persistiu uma lógica militar na organização das polícias.
O escritor e antropólogo Luiz Eduardo Soares, autor do livro "Elite da Tropa" que deu origem ao filme "Tropa de Elite", tem destacado que a arquitetura das instituições de segurança pública perpetua uma organização muito fechada e pouco transparente ao povo, inviabilizando o seu controle.
Pode-se acrescentar isso o fato de que o tratamento da segurança pública pelo Estado brasileiro não recebeu a filtragem constitucional necessária, capaz de entendê-la em conjunto com a concretização de outros direitos.
A segurança pública é um direito fundamental, mas não pode ser pensada a partir de uma lógica meramente repressiva.
É necessário que a governança democrática dos órgãos de segurança apareça como um tema central. Afinal, as diretrizes mais rotineiras aplicáveis ao resto dos governos não atingem as polícias. Regras pouco transparentes e a lógica do segredo amplo e ir em favor da investigação ou da “inteligência” costumam prevalecer.
Como consequência, episódios de violência do Estado são sempre justificados com base em um “interesse maior” ou na luta do “bem” contra o “mal”. O impacto desproporcional e a anormalidade de incursões policiais em favelas, favorecendo a ocorrência de verdadeiras chacinas, mostram a insuficiência do argumento, tornando inadiável o debate sobre o controle democrático da segurança pública.
O art. 5º da Constituição prevê o caráter inviolável do direito à segurança. Ao pensar a segurança pública, é necessário integrar o art. 144 ao art. 5º e à proteção de outros direitos fundamentais, associando-o à democracia, à dignidade da pessoa humana e à liberdade e igualdade.
O art. 144 estabelece a segurança pública como um dever do Estado e direito e responsabilidade de todos, e ressalta que ela deve ser exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio. A ordem pública e a incolumidade das pessoas são conceitos indeterminados que não indicam claramente o rumo a ser tomado na definição do direito e da política que dela advém.
É necessário, assim, definir esse conteúdo, desde que seja alinhado ao Estado democrático de direito e possua parâmetros de igual respeito e consideração às populações tidas como “indesejáveis”, sobretudo aos habitantes de favelas.
Nesse ponto, para além da crítica imprescindível à chamada “guerra às drogas”, deve-se assegurar que o procedimento de formulação da política de segurança pública.
Uma política que seja transparente e que o funcionamento das polícias esteja baseado em regras e diretrizes previamente definidas, com crivos constitucionais e democráticos.
Por exemplo, as buscas e apreensão em favelas sem mandado, o uso do chamado caveirão aéreo, o o indistinto a dados telemáticos e a vigilância permanente por meios tecnológicos, a discricionariedade na definição e programação de operações, com base unicamente em supostos mandados abertos, e os protocolos de atuação são alguns temas sensíveis que mereceriam controles de legalidade e sociais, não cabendo falar na lógica do sigilo.
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A governança da segurança pública deve ser transparente, não se confundindo com os detalhes operacionais e sigilosos da atividade investigativa. É natural que o segredo seja mantido em relação a certos aspectos de uma determinada investigação, mas ele não pode ser utilizado como salvo-conduto para a falta de transparência da própria política.
No caso Favela Nova Brasília, que culminou na responsabilização do Estado brasileiro pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, constatou-se que a falta de procedimentos claros e a ausência de responsabilização de violadores de direitos fundamentais enseja um cenário de completa omissão estatal.
O sistema de justiça, sobretudo por meio do Poder Judiciário e do Ministério Público, deve com urgência delimitar seu campo de atuação por meio de um diálogo institucional com os órgãos de execução que tenha como baliza a deferência democrática das diretrizes estabelecidas nas políticas de segurança.
Regras construídas mediante controle social independente, em diálogo com as comunidades, com o fim de indicar a governança da segurança pública deveriam constituir um parâmetro fundamental na avaliação da atividade policial.
Isso não significa o reconhecimento puro e simples da legitimidade democrática com base na vitória de um determinado projeto nas urnas, mas sim da necessidade de que as diretrizes e planejamentos estabelecidos sejam precedidos de processos de participação e discussão racional e fundamentada sobre a necessidade e a viabilidade de medidas capazes de restringirem direitos.
Ao utilizar a deferência democrática como ferramenta, o sistema de justiça pode indicar os horizontes e os quadrantes nos quais a polícia deve atuar.
Exigir a atuação democrática antes do estabelecimento de regras como fator de limitação da atividade pode ser um antídoto à falta de regras transparentes e um estímulo à participação social, além de criar as condições necessárias para a responsabilização do Estado quando ele não observa esses quadrantes ou quando extrapola essa governança em nome do sigilo. O desafio é premente.